Trump X FED: o nocaute do velho playboy

Gilmar Mendes Lourenço.
Há reduzidas dúvidas quanto ao rechace da perseguição do equilíbrio macroeconômico pelo receituário populista, rotineiramente irresponsável e/ou descabido, acompanhado de manifestações de desconforto com a adoção de estratégias voltadas ao estabelecimento de disciplina fiscal e monetária.
Mais do que isso, o modus operandi dos entes “apegados ao povo” não costuma poupar ataques às instâncias não subordinadas às vontades daqueles que se consideram proprietários do poder, conquistado tanto de forma autoritária quanto por vias transparentes pavimentadas pela democracia.
Essa espécie de protocolo pode ser exemplificada pela virada de casaca da ultradireita brasileira, em 2022, atestada pela autêntica demolição do edifício dos fundamentos fiscais – regra de ouro, teto de gastos e lei de responsabilidade -, em nome da sustentação do fracassado projeto de reeleição de Bolsonaro.
O mais gritante é que aquela anomalia se deu com o endosso e participação ativa da retaguarda fisiológica do legislativo, abarcando a tomada (ou seria delegação voluntária?) do executivo dos trabalhos de formulação e execução do orçamento – que, em tese, deveria espelhar as escolhas da sociedade – e o festival das emendas impositivas.
Tais absurdos consubstanciaram a preparação do sepultamento do presidencialismo de coalização e a vertiginosa ascensão do parlamentarismo de extorsão, baseado no cotidiano de agremiações partidárias disfuncionais, ocupadas com o manuseio dos generosos recursos públicos dos fundos partidário e eleitoral, e em blocos de interesses cartoriais.
Em sendo capitaneados por entes carreiristas ou mesmo desprovidos de escrúpulos, os partidos e blocos transformaram a Casa de Leis em um balcão de negócios, incluindo até a impensável reserva de espaço para veementes defesas de insurgentes antidemocráticos, escondidas ou escancaradas.
Mais especificamente, no caso em tela, houve a implementação de renúncias tributárias federais sobre o consumo de serviços de energia elétrica e de telecomunicações e a comercialização de combustíveis e o vultoso acréscimo dos repasses oficiais destinados a famílias e empresas, abarcando pobreza e classe média.
Os dispositivos assistenciais, apelidados jocosamente de “Bolsolão”, ficavam sob o guarda-chuva do Auxílio Brasil – junção do Bolsa Família e do Auxílio Emergencial, criado pelo Congresso, em 2020, no princípio da pandemia de Covid-19 -, absolutamente acéfalo da definição de qualquer critério técnico para concessão, que propiciou a surpreendente ampliação a ampliação de registro de pessoas que moram sozinhas.
Em idêntica marcha ressalta o permanente inconformismo do presidente Lula, portador de ímpeto em favor da expansão descontrolada do dispêndio público corrente, em seu terceiro mandato, expresso no esforço de desqualificação da conduta ortodoxa da autoridade monetária brasileira, o Banco Central (BC) – dotado de autonomia operacional desde a desinflação dos anos 1990 e independência formal a partir de 2021 -, notadamente quando comandada pelo economista Roberto Campos Neto, designado pela administração anterior.
Outra ilustração da inclinação intervencionista repousa na explicitação do desejo do incumbente argentino, Javier Milei, empossado em dezembro de 2023, de promover a extinção do BC e executar a dolarização plena da economia do país, inviabilizada pela insuficiência de apoio parlamentar. Frise-se que a dolarização parcial foi ensejada com a abertura das comportas de socorro financeiro do Fundo Monetário Internacional (FMI), como gesto de aceitação (ou melhor, satisfação), da aplicação da ortodoxia econômica.
Não bastasse as estripulias retóricas e práticas brotadas do “fim do mundo”, parafraseando o “ressuscitado” Papa Francisco ou a “instituição Francisco”, eis que emergiu a “balada pistoleira” de Donald Trump, mandatário dos Estados Unidos (EUA), a maior economia do planeta, desde janeiro de 2025, pela segunda vez, tendo como alvo o Federal Reserve (Fed).
A cruzada pela imediata diminuição dos juros primários “na marra”, iniciada por Trump desde a confirmação dos resultados eleitorais favoráveis, em 2024, e intensificada depois da posse, ganhou contornos de agressões pessoais desferidas contra Jerome Powell, o Chairman da entidade, apelidado de “Sr. Tarde Demais” ou “grande perdedor”, que teria “preferido atuar em comunhão com a cúpula do Partido Democrata”.
Os juros praticados pelo Fed situam-se no intervalo entre 4,25% e 4,50% ao ano, tidos como extremamente elevados quando cotejados com a experiência histórica americana, porém avaliados como indispensáveis à promoção da convergência da inflação doméstica no sentido da meta anual de 2% (estava em 2,4%, em março de 2025), fortemente prejudicada com o tarifaço anunciado por Trump, que representará, se for concretizado, conformará um apreciável choque negativo de oferta.
Uma afirmação ameaçadora de um assessor econômico da Casa Branca de que estaria em exame a possibilidade de retirada, ou interrupção do mandato, de Powell – escolhido por Trump, em 2018, e reconduzido por Biden, em janeiro de 2022 – do cargo, antes do final de seu segundo tempo consecutivo, cujo encerramento acontece em maio 2026, provocou a disseminação e a intensificação das desconfianças contra a moeda americana.
Sintomaticamente, delineou-se o enfraquecimento do dólar e dos ativos a ele atrelados e, o que é pior, o abalo de sua utilização privilegiada como reserva de valor e lastro para operações comerciais e financeiras globais, além da disparada dos juros da dívida americana e da procura de portos seguros alternativos, atestada pela subida do ouro, que rompeu a marca simbólica de US$ 3.500 a onça.
O S&P 500, o mais importante indicador da saúde das bolsas de valores dos EUA, despencou 14%, entre 21 de janeiro e 21 de abril de 2025, configurando o maior tombo da série de levantamentos iniciada em 1928, um ano antes do colapso dos negócios que precipitou a Grande Depressão.
Isso porque, a declaração ocorreu em um estágio de deflagração de inúmeras providências econômicas absurdas, capitaneadas pela decretação da guerra comercial, recheada de idas e vindas, e as projeções de multiplicação do estratosférico desequilíbrio orçamentário do governo dos EUA.
Cumpre esclarecer que não há a menor chance legal de demissão compulsória de Powell, por divergência com Trump e equipe econômica, se confirmar, a não ser pelo cometimento de erro grave. Mesmo assim, prevalece um vácuo no processo deliberativo, em face da ausência de posicionamento da Suprema Corte a respeito da pertinência do presidente da república dispensar membros do corpo decisório das agências reguladoras, dentre as quais supostamente figuraria o Fed.
É necessário lembrar que, em sendo um organismo secular, fundado em 1913, o Fed obedeceu a diferentes graus de autonomia ao longo de sua trajetória de atuação, que assumiram contornos mais definidos depois da segunda crise do petróleo, em setembro de 1979, provocada pela duplicação de preços acertada pela Organização dos Países Produtores e Exportadores de Petróleo (Opep).
Na época, o Manda-Chuva do Fed, Paul Volcker, optou pelo bloqueio da espiral inflacionária derivada da super apreciação do óleo, mediante a elevação da Prime Rate – taxa preferencial de juros cobrada pelos bancos dos EUA dos tomadores com melhores avaliações de crédito – de 8% para 21,5% ao ano.
Em linha análoga, a Libor (London Interbank Offered Rate) – ou taxa interbancária do mercado de Londres, praticada para as grandes operações de empréstimos entre as instituições que trabalham com eurodólares – subiu de 6% para 16,4% ao ano.
A propagação da impulsão do custo do crédito primário, que perdurou até 1982, alargou a atratividade dos títulos dos EUA e produziu profunda recessão em escala planetária e o default do passivo externo das nações em desenvolvimento, que haviam ampliado os respectivos endividamentos em moeda forte, nos anos 1970, a juros variáveis.
Paulatinamente verificou-se o reforço da conduta – obrigatória, diga-se de passagem – de priorização da proteção do valor da moeda (leia-se, o poder de compra da população) vis a vis os propósitos e iniciativas de governantes normalmente empenhados no atendimento de vontades de seus grupos de sustentação.
Nessa perspectiva, não adianta a apresentação de bodes expiatórios e o repasse da culpa pelos desarranjos econômicos potenciais – resultantes da alienação de aliados e parceiros históricos e da empreitada de desmantelamento do estado – aos agentes habilitados à tomada de medidas impopulares, suficientemente blindados contra aventuras de atores políticos afoitos e despreparados, na mais delicada das apreciações.
Ao empregarem postura fervorosamente empenhada no declínio dos juros e na ampliação infinitesimal das despesas governamentais, com desdobramentos positivos sobre os níveis de emprego e renda em curto prazo, governantes e correspondente entourage, miram exclusivamente a colheita de dividendos eleitorais.
Por conta do voluntarismo econômico volátil subjacente à gestão Trump, o FMI revisou a projeção de crescimento do produto interno bruto (PIB) mundial de 3,3% para 2,8%, em 2025, e o dos EUA de 2,7% para 1,8%, o que ainda parece bastante moderada, em face da natureza imprevisível da “lógica” e comportamento devastador do recém-empossado.
Mesmo com os recuos de Trump, no choque de tarifas e na rasteira no Fed, soa relevante reter que nações democráticas, tomadas por instituições fortes e BCs independentes, conseguem bloquear iniciativas demagógicas e, por extensão, apresentar taxas de inflação consistentemente menores e/ou mais acomodadas e crescimento econômico sustentado e encorpado.
Por outro lado, as intentonas de democratas presidencialistas ou autocratas banais contra os BCs usualmente trazem consequências econômicas desconfortáveis. No primeiro caso, o insistente populismo anti-inflacionário, englobando o represamento dos juros, levado a cabo no primeiro mandato de Dilma Rousseff, entre 2011 e 2014, sob o signo da Nova Matriz Econômica, oportunizou, ao mesmo tempo, a vitória nas urnas, em 2014, e a semeadura das mudas da maior contração econômica da história e do impeachment e cassação da mandatária.
Já, em clima de autoritarismo, apesar dos sucessivos desligamentos de presidentes dos BCs, patrocinados pelo líder turco Recep Tayyip Erdoğan, sendo o mais recente em 2021, a inflação da nação pulou de 19%, em 2021, para 72%, em 2022, e encerrou 2024 em preocupantes 58,5%.
Em resumo, em simples palavrório do Ultimate Fighting Championship (UFC), de propriedade do aliado Dana White, no pouco planejado confronto voltado à obtenção da rápida submissão do Fed, sob o falso pretexto de oxigenação da economia, o “velho playboy” sucumbiu e terá que descer de categoria se almejar integrar cards futuros, ainda que preliminares.
O artigo foi escrito por Gilmar Mendes Lourenço, que é economista, consultor, Mestre em Engenharia da Produção, ex-presidente do Instituto Paranaense de Desenvolvimento econômico (Ipardes), ex-conselheiro da Copel e autor de vários livros de Economia.Instituto Paranaense de Desenvolvimento econômico (Ipardes), ex-conselheiro da Copel e autor de vários livros de Economia.