Derrotas eleitorais do Trumpismo “da gema”: Canadá e Austrália

Gilmar Mendes Lourenço.
Pelo andar da carruagem, a carreira de influenciador eleitoral, do político encarregado, nos próximos quatro anos, ou um pouco menos, da regência da orquestra do espetáculo “de Washington para o mundo”, não possui um destino muito promissor ou mesmo prazeroso. Os reveses sofridos por concorrentes trumpistas no Canadá e Austrália são exemplos patéticos e práticos da rejeição ao “jeitão Trump de ser e de viver”.
Por enquanto, a figura midiática e reacionária, e mítica para os fiéis seguidores, mais parece um espantalho, em processo de rápida e profunda corrosão de credibilidade e, o que é mais grave, empurrando para o abismo o partido Republicano, que exibe identidade esfacelada e ações absolutamente desconectadas dos anseios da maioria da sociedade.
Na verdade, a extraordinária conquista eleitoral do Republicano, no pleito dos Estados Unidos (EUA), em 2024, com expressiva diferença de votos em relação à candidata adversária, a vice-presidente Kamalla Harris, que concorria pela legenda do Partido Democrata, sugeria a conformação de um movimento de transformação política na direção da retomada e subsequente alavancagem da interferência da extrema direita nos destinos políticos internacionais.
Tanto que, Elon Musk, uma espécie de embaixador do trumpismo, arregaçou as mangas na cruzada de interferência em diferentes disputas que aconteciam pelo planeta, notadamente no continente Europeu, que sinalizavam acentuada probabilidade de desmonte de não poucas democracias e ascensão de autocracias brutas ou disfarçadas.
Porém, decorridos pouco mais de três meses desde a posse do novo mandatário americano, sua ofensiva marcadamente improvisada, com a multiplicação de equívocos em praticamente todas as direções, começa a produzir resultados eleitorais considerados frustrantes para os propósitos de recomposição e dominação definidos pela ultradireita.
Dentre as incongruências levadas a cabo pelo “cabeça pouco pensante” sobressai a subida das alíquotas de importação, em nome da ressurreição do paradigma de substituição de importações, em ambiente de pulverização espacial das firmas com especialização das cadeias produtivas; o desligamento do Acordo de Paris e o consequente rompimento com a agenda ambiental; o estímulo à exploração de minerais fósseis, em contraste com a transição energética; além dos inúmeros tropeços no trabalho de mediação dos conflitos bélicos, particularmente no Oriente Médio e em território russo e ucraniano.
Não por acaso, de acordo com cálculos preliminares do Departamento de Comércio dos EUA, o produto interno bruto (PIB) anualizado do país encolheu -0,3% no primeiro trimestre de 2025, depois de ter crescido 2,4%, entre outubro e dezembro de 2024, configurando a primeira queda desde o princípio de 2022, quando a economia global ainda se ressentia e recompunha dos estragos ocasionados pela pandemia de Covid-19.
O recuo traduz elementos anômalos derivados dos danos determinados pelo tsunami trumpista, expressos na antecipação de importações pelas companhias, associada à expectativa do tarifaço, na diminuição das compras governamentais, decorrentes do agressivo desmonte da máquina pública, e no esfriamento do consumo das famílias, ditado pela supressão de direitos sociais e alargamento da cautela diante da exacerbação dos temores em relação ao que vem pela frente.
Sintomaticamente, levantamento do Instituto Ipsos, pertencente ao grupo do jornal “Washington Post” e da rede de TV ABC News, feito no final de abril de 2025, demonstrou aprovação de 39% da gerência do “velho playboy”, a menor em cem dias de mandato presidencial em oito décadas.
Na contenda nacional do Canadá, acontecida em 28 de abril de 2025 – com antecipação da data prevista para outubro, por conta da renúncia do primeiro-ministro Justin Trudeau, em janeiro deste ano – o substituto, desde de março de 2025, Mark Carney, postulante pelo Partido Liberal (PL), localizado no centro-esquerda do espectro ideológico, conquistou a renovação do mandato da agremiação.
A reeleição do PL aconteceu pela quarta vez seguida, com o desbanque, com margem apertada (52% dos votos válidos), do franco favoritismo, predominante até o final de 2024, do candidato conservador, Pierre Poilievre, conhecido como Trump canadense, em face da posição frontalmente contrária aos imigrantes e a proposição de cortes de impostos.
As sondagens indicavam diferença de 24 pontos percentuais em favor de Poilievre, que, festejado por Musk e os milhões de simpatizantes da ortodoxia trumpista, defendendo bandeiras parecidas com a do patrono, com a repentina alteração de tendências, amargou surpreendente fracasso.
Em um estágio de flagrante exacerbação dos componentes de insegurança, a população canadense, penalizada pela inflação, sobretudo os elevados custos de habitação, o reduzido patamar de crescimento e de geração de empregos, e preocupada com a peso da migração descontrolada na deterioração da retaguarda de serviços públicos, preferiu majoritariamente pelo sufrágio da candidatura que denotava equilíbrio.
Mais do que isso, a alternativa Carney mostrava-se transmissora de competência técnica, sendo liderada por um representante da “feição inovadora” na política nacional, que nunca havia concorrido à cargo dependente de escolha majoritária por votação popular.
Ressalte-se que a caminhada de Carney – economista formado em Harvard – caracterizou-se pelo exercício talentoso de funções ligadas eminentemente as atividades de gestão, em especial como chairman dos bancos centrais do Canadá (entre 2008 e 2013) e do Reino Unido (no período 2013-2020), sendo neste último o único estrangeiro em 300 anos.
Lembre-se que na cerimônia de abdicação da posição de premier e da direção do PL, preenchida por dez e doze anos, respectivamente, em efetivo comando, Trudeau proferiu veemente discurso de contestação ao tarifaço imposto por Trump – inclusive aos membros do Acordo Estados Unidos-México-Canadá (USMCA), também conhecido como “Novo Nafta”, com alíquotas de 25%, e imposição de tarifas recíprocas a outros aliados tradicionais e concorrentes-, com pronunciado apelo popular.
O evento eleitoral do Canadá remete ao levantamento da premissa de que, em tempos de polarização política generalizada, a desvantagem derivada da apresentação de um perfil mais técnico pode constituir uma autêntica fortaleza, quando adotada em defesa da soberania nacional. Com o orgulho nacional atingido, a população canadense passou a boicotar produtos provenientes dos EUA e cancelar e evitar viagens ao país vizinho.
Isso é especialmente verdadeiro quando constatada a necessidade de enfrentamento de plataformas e proposições de natureza bombásticas, como aquelas endossadas por um agente que, em curto espaço de tempo, desencadeou uma guerra tarifária e ameaçou transformar o Canadá no 51º estado americano, referindo-se ao então premier Trudeau como governador.
Nessa perspectiva, Carney foi cirúrgico nas incursões retóricas ao rechaçar à vontade trumpista de arrebatar a base de recursos canadense e enfatizar o imperativo de preservação da mega parceria entre as duas nações, que, por sinal, responde por mais de 80% do comércio externo do país, com laços adicionais em campos estratégicos como militar e espionagem.
Portanto, uma partida eleitoral destinada simplesmente a homologar, via apuração das urnas, a desidratação da gestão de Trudeau – com imagem bastante desgastada e popularidade em marcha descendente – e dos liberais, transformou-se em repúdio ao “trumpismo genuíno”, a ponto de Poilievre implorar, tardiamente, a retirada do apoio escancarado do presidente norte-americano.
A derrota de Poilievre englobou até o projeto de reeleição à cadeira no poder legislativo, como representante de Carleton, distrito de Ontário, que foi sua por 20 anos, para o liberal Bruce Fanjoy.
Não obstante, a bancada parlamentar conservadora ampliou a ocupação do número de assentos, ficando os liberais com 169, inferior aos 172 que assegurariam a maioria requerida para uma administração desprovida da necessidade de amplos entendimentos.
Igualmente com sabor de reviravolta, o primeiro-ministro australiano, Anthony Albanese, de centro-esquerda, do Partido Trabalhista, conseguiu a reeleição, a primeira em duas décadas, nas votações de 03 de maio de 2025, com larga diferença, contra o trumpista, conservador e linha dura, das hostes do Partido Liberal, Peter Dutton, que, por sinal, sacrificou seu próprio mandato de 24 anos.
A rigor, em caso de prosseguimento das atitudes inconsistentes, insensatas e devastadoras do chefe fanfarrão da Casa Branca, não representa absurdo o delineamento de cenários de reprodução de desfechos contrários aos interesses e vontades dos segmentos conservadores em outras contendas que ocorrerão no restante do mundo.
Mais precisamente, parece razoável admitir a rápida deterioração da capacidade, ou mesmo do glamour, de Trump como cabo eleitoral de ortodoxos da direita radical, e a propagação ou a influência da resistência canadense e australiana em certames eleitorais relevantes, como no Chile, que ocorrerá ainda em 2025, e, no Brasil, em 2026.
Isso significa afirmar que os rearranjos políticos em curso, capitaneados por partidos de direita em algumas democracias, envolvendo a absorção tácita do potencial eleitoral das (in) desejáveis correntes radicais, voltados aos próximos embates com a centro-esquerda, devem contemplar o pronunciado risco associado à aceitação ou submissão ao “fascínio trumpista”.
Nesse contexto, a complexa tarefa de abrandamento, ou mesmo bloqueio do avanço da fúria radical, exigirá a escolha do uso de métodos e instrumentos institucionais capazes de fortalecer a liturgia do processo legal, ou, na pior das hipóteses, de oferecer mecanismos de estabilização e conferir previsibilidade ao ordenamento democrático.
O artigo foi escrito por Gilmar Mendes Lourenço, que é economista, consultor, Mestre em Engenharia da Produção, ex-presidente do Instituto Paranaense de Desenvolvimento econômico (Ipardes), ex-conselheiro da Copel e autor de vários livros de Economia.Instituto Paranaense de Desenvolvimento econômico (Ipardes), ex-conselheiro da Copel e autor de vários livros de Economia.