Porque o Banco Central não é o herói da resistência

Gilmar Mendes Lourenço
Este artigo não possui a menor afinidade com o comportamento da extraordinária banda de rock brasileira, formada na década de 1980, a partir de uma discreta dissidência do baixista e vocalista Leoni, então integrante do famoso e talentoso grupo Kid Abelha.
O que se trata aqui é da interpretação da ideia predominante no interior do mercado financeiro, absorvida plenamente e disseminada pelos formadores de opinião acerca do empenho solitário exercido pelo Banco Central (BC), ou mais precisamente o Comitê de Política Monetária (Copom), na firme resistência ao potencial de instabilidade macroeconômica, subjacente à contínua e crescente expansão fiscal promovida pelo executivo federal.
Fazendo um parêntesis, na esfera política os “heróis da resistência” do presente poderiam ser confundidos com os atrapalhados planejadores do fracassado golpe de estado, que deveria ter sido aplicado preferencialmente depois da proclamação dos resultados do segundo turno das eleições de outubro de 2022, ou, na pior das hipóteses, no princípio de 2023.
Também figurariam nesse estrato aquelas pessoas acampadas junto aos portões dos quartéis do exército, inconformados com o desfecho da contenda eleitoral, os invasores e depredadores dos prédios públicos da capital federal, em 8 de janeiro de 2023, um certo deputado federal fujão, acolhido pelo “autoritarismo liberal”, propagado pelo presidente dos Estados Unidos (EUA), e um senador defensor da celebração de compromisso de indulto ao ex-mandatário golpista, por eventuais candidaturas de direita desejosas de apoio no embate de 2026.
Porém, depois de terem sido veemente rechaçadas pela esmagadora maioria da população, as perturbações de ordem política ou o projeto de ruptura institucional, vem sendo adequadamente operados nos estágios dos inquéritos, processos, indiciamentos, julgamentos, condenações e prisões, conforme o regramento democrático formal, no afã de eliminação de chances de recidivas.
A análise de hoje repousa exclusivamente nas motivações e implicações da escolha do conservadorismo ou aperto pela agência encarregada da estabilidade monetária. De fato, parcela apreciável da dinâmica econômica, reconhecidamente virtuosa do Brasil, notadamente a partir do segundo semestre de 2022, pode ser imputada a elementos de intervencionismo fiscal.
Há uma acentuada ampliação dos dispêndios públicos correntes federais, impulsionada pelas políticas oficiais de distribuição de renda e proteção social, com ênfase para a revalorização do salário mínimo e o alargamento reorganizado do programa Bolsa Família, além da restauração do Minha Casa Minha Vida e o Farmácia Popular.
Na mesma linha, as estatísticas fiscais da Secretaria do Tesouro Nacional (STN), atestam a disparada das despesas na execução fiscal dos entes subnacionais (estados e municípios) – que cresceram mais de 8% reais, em 2024 -, alguns inclusive portadores de retrato financeiro com feições de dramaticidade, por conta da ausência ou negligência na utilização de critérios contemporâneos de gestão de caixa, compatíveis com as flutuações do ciclo econômico e a performance da entrada de recursos.
Há ainda a interferência da atitude cínica e hipócrita, ainda que hegemônica, do legislativo, fortalecido com o tsunami das emendas que, dissociada das políticas de estado, além de provocarem a subida desproporcional dos gastos, contribuem decisivamente para a eternização de mandatos e, consequentemente, o enfraquecimento do pluralismo e a alternância, variáveis marcantes das democracias modernas.
Não menos nocivo é a postura gastadora do judiciário nacional, o mais caro do mundo, em proporção do produto interno bruto (PIB), ostentando uma das menores relações entre benefício e custo, e ferrenhamente agarrado e acomodado aos penduricalhos, que fazem os proventos suplantarem, em larga medida, o teto constitucional.
Considerando que o avanço dos dispêndios públicos tem se endereçado ao estímulo do consumo privado, desatrelado de estratégias voltadas ao encorpado acréscimo dos investimentos públicos e indução das inversões privadas, e, por extensão, o incremento da oferta potencial, o aparecimento de tensões inflacionárias pelo lado da demanda seriam inevitáveis e exigiriam maior carga de juros.
Igualmente problemáticas são as pressões crônicas dos serviços sobre a curva de preços, em um ambiente de subida da massa de salários reais (emprego e rendimentos), ainda que puxada por relações de trabalho precárias, determinadas pela permanência da informalidade acima de 40% do pessoal ocupado.
Só que a majoração da taxa de Selic em 0,25 pontos percentuais, passando de 14,75% a.a., para 15% a.a., no encontro do Copom de julho de 2025, e sinalização de interrupção da trajetória altista com manutenção do degrau por prolongado período, afrontou as expectativas dos meios especializados. É o sétimo pulo seguido desde setembro de 2024 e o maior patamar desde julho de 2006, quando estava em 15,25% a.a.
Na mesma data, a despeito das investidas de Trump buscando a redução dos juros americanos, com inflação anual de 2,4%, até maio, versus meta de 2%, o Federal Reserve (Fed) deliberou pela manutenção da taxa primária dos EUA entre 4,25% a.a. e 4,50% a.a., em razão do aprofundamento da atmosfera de insegurança, denotando, no melhor dos mundos, duas quedas de 0,25%, até o final de 2025.
Cumpre acrescentar o ataque dos EUA às instalações nucleares iranianas, em 21 de junho de 2025, sem aval da Organização das Nações Unidas (ONU), que destruiu o acordo firmado pelos Democratas e, na visão do vice-presidente J.D. Vance, constitui a nova doutrina ou diretriz trumpista de política externa, que, no fundo, busca o desmantelamento do que sobrou da ordem mundial.
O problema é que a inclinação do colegiado brasileiro gerou algum ruído de comunicação entre staff do BC e comunidade financeira, que previa majoritariamente a parada nos 14,75% a.a., e, o que é mais gritante, não possui perfeita aderência ao cotidiano econômico e engrandece o peso das apreensões com o retardo do equilíbrio intertemporal das finanças públicas.
A autoridade monetária também tem magnificado a exacerbação das incertezas no front internacional, com as peripécias e idas e vindas de Donald Trump, no campo de guerra das tarifas comerciais recíprocas, e as flutuações geopolíticas, com o prosseguimento da guerra “Rússia versus Ucrânia” e a ofensiva israelense contra Gaza e Irã, e a participação direta dos EUA na destruição dos redutos nucleares, com riscos de descontinuidade de suprimento de petróleo extraído do golfo pérsico e inevitável alta das cotações.
O esperançoso aguardo de dias melhores para o cenário fiscal nacional, em um estágio de largada antecipada do episódio eleitoral de 2026, caracterizado pela intensificação das bondades pelo governo de plantão, coadjuvadas e aprimoradas pela farra patrocinada pelo Congresso Nacional, equivale à crença em coelhinho da páscoa e papai Noel.
Enquanto isso, os lances das oposições resultam de verdadeira colcha de retalhos, tapeada por costura moderninha, englobando desde absurdas recomendações de nacionalização de experiências estaduais exitosas de equilíbrio de caixa, produzidas às custas de persistente arrocho da folha de salários dos servidores públicos, até a feitura de discursos inflamados e despropositados em eventos evangélicos com a cobertura da bandeira de Israel.
Em outras palavras, se depender da intransigente vontade de reeleição de Lula 3 e a gulodice do parlamento, não haverá qualquer arremedo de ajuste fiscal em 2025 e 2026, muito menos um programa robusto e crível de racionalização e supressão de gastos.
Cabe sublinhar que a Câmara dos Deputados foi engordada de 513 para 531 cadeiras e, liderada pelo Centrão – que mamará nas tetas das emendas, das verbas dos ministérios e dos fundos (partidário e eleitoral) até o derradeiro instante do desembarque, destinado à montagem e/ou apoio de uma candidatura de oposição -, em paralelo ao vertiginoso enfraquecimento político do governo, com o chefe de estado reverenciado como um “pato manco”,
Voltando ao diagnóstico do Copom, este aparenta ignorância da marcha descendente da inflação global e, principalmente, doméstica, abarcando as projeções, com o índice nacional de preços ao consumidor amplo (IPCA), do IBGE – referência do regime de metas de inflação -, evoluindo 5,32% em doze meses encerrados em maio de 2025, contra 5,53%, em abril.
Outro complicador adicional é que a espiral de preços permanece sendo catapultada pelo grupo “alimentos e bebidas” (7,33%), que, de acordo com os princípios elementares da teoria econômica, representam componentes de oferta ou custos, o que os torna pouco receptivos ou mesmo insubordinados aos choques de juros emanados da política monetária.
Se forem retirados do IPCA os efeitos das cotações internacionais das commodities alimentares, que subiram 7,5% e 18,6%, em dólares e reais, respectivamente, em doze meses findos em maio de 2025, a inflação anual declina para 4,4%.
Por tudo isso, os juros reais (com desconto da inflação) básicos brasileiros, situam-se nas alturas, ou 9,5% a.a., o que corresponde ao segundo lugar no mundo, atrás da Turquia (14,4% a.a.) e superiores aos da Rússia (7,6% a.a.), Argentina (6,7% a.a.) e África do Sul (5,5% a.a.).
Cálculos preliminares, levando em conta o hiato entre inflação e juros domésticos vis a vis os globais, a apreciação cambial, as circunstâncias de desaquecimento da economia, a ascensão dos salários reais acima da produtividade e o adensamento da oferta de crédito, derivado do fortalecimento do mercado de capitais e da moderada diminuição da concentração bancária, a Selic poderia estar confortavelmente em 12% a.a., o que, de lambuja, favoreceria a diminuição do fardo dos encargos incidentes sobre o passivo do setor público.
Até porque, se o BC prosseguir insensível aos interesses dos segmentos produtivos (empresários, trabalhadores e consumidores) e preferir esperar por um desfecho breve para a deterioração fiscal e o esboço de convergência da inflação para a meta, estipulada pelo Conselho Monetário Nacional (CMN), com centro de 3% a.a. e faixa de variação de 1,5% a.a., os juros básicos começarão a declinar no Brasil somente no dia de “São Nunca”, conforme pertinente advertência feita pelo colunista do jornal Folha de São Paulo, Vinicius Torres Freire.
Urge o escape dessa armadilha do “planejamento de visão encurtada”, repleta de barreiras ao erguimento de consensos e aversões ao encampe das demandas nacionais, sob pena de adiamento da preparação e implantação de uma agenda programática de transformação focada no longo prazo, capaz de encaminhar soluções estruturais para a estarrecedora disparidade social nacional.
A propósito disso, segundo o Atlas da Mobilidade, elaborado pelo Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social (IMDS), somente 2,5% das crianças brasileiras nascidas entre os 20% mais pobres conseguem, quando adultas, integrarem o espaço dos 20% mais ricos, contra 7,5%, nos EUA, 10%, na Itália, e 15%, na Suécia.
Outro sintoma preocupante é que 44% da população brasileira não possui educação básica, ante 20% das nações integrantes da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), situando-se atrás, na América do Sul, de Colômbia (37,9%), Argentina (33,5%) e Chile (28%),
Diante do exposto, não soa difícil perceber que as tarefas requisitadas do elenco dos “heróis da resistência” se revelam mais complexas do que imaginam os costumeiramente devotados “cabeças de planilha”, extremamente frios aos novos e ampliados anseios sociais.
Mais do que isso, o cumprimento da complicada missão de conjugação de estabilização macroeconômica, sustentada no alinhamento da estrutura de preços relativos, e inclusão social, impõem diálogos políticos maduros entre os principais atores políticos, desapegados de desejos polarizadores, ou mesmo equidistantes dos extremismos ideológicos, plantados e cultivados por esquerda e direita, que exigirá o desmanche, ou pelo menos o afastamento, de incursões populistas eminentemente eleitoreiras.