
Há fortes evidências de que o Brasil consolida a 2ª posição no ranking global de casos confirmados de contaminação e mortes por Covid-19, atrás apenas dos Estados Unidos (EUA), mesmo sem ter chegado ao pico de infecções da 1ª onda, enquanto a nação norte-americana, e outras, vêm ingressando na 2ª fase, por conta da precoce e heterogênea suspensão das medidas de isolamento social, enquanto não se dispõem de vacina para neutralização do vírus.
Aliás, a sucessão de eventos de fechamento, abertura e imposição de novas restrições vem marcando o comportamento decisório de praticamente todos os governantes das nações atingidas pela pandemia, na ausência de alternativas e/ou saídas definitivas determinadas por descobertas científicas capazes de propiciar tratamento ou eliminação do Novo Coronavírus.
A reprodução da crise sanitária planetária no território nacional tem se mostrado mais acentuada, se for referenciada especialmente pela exaustão da capacidade de suporte de equipamentos e insumos hospitalares, apesar do diferencial favorável vis a vis os demais países, representado pela estrutura descentralizada do Sistema Único de Saúde (SUS), um direito universal garantido pela Constituição de 1988.
O indiscutível caos brasileiro deriva da combinação de vários tropeços e equívocos, com destaque para a deficiente preparação prévia e o desprezo ao potencial destrutivo da doença, enquanto o surto nascido na China se alastrava pelo restante da Ásia, Europa e EUA. É bastante provável que o Carnaval tenha se caracterizado por farras de transmissão comunitária e submissão das autoridades de saúde aos interesses econômicos subjacentes à festa popular.
Na mesma linha, a postura excessivamente cautelosa e defensiva adotada pelo ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, ainda que supostamente amparada permanentemente em avaliações e orientações científicas, somada à disseminação da mistura venenosa de fúria e ignorância, manifestada pelo chefe de estado, deixou os governantes das instâncias subnacionais desnorteados, pressionados pelos riscos de rápido avanço da patologia e deterioração do ambiente econômico e social, resultante da aplicação das quarentenas, que provocaram profunda queda da atividade econômica.
Muitos deles, por sinal, principalmente alguns prefeitos de capitais, ao serem espremidos por demandas de relaxamento do confinamento social, colocadas por empresários, em um momento de priorização da atenção antecipada ao episódio das eleições municipais, assumiram atitudes irresponsáveis e bizarras como, em plena trajetória de progressão exponencial do contágio pelo Vírus, liberarem o funcionamento de shoppings, academias e bares, negligenciarem a operação do transporte coletivo e implorarem para que as pessoas permanecessem em casa.
Como esperado, situações tidas como gerenciadas de forma competente e exemplar sucumbiram e, em poucos dias, deram lugar ao colapso. Duas capitais do Sul, Curitiba – que chegou a ser elogiada publicamente, pelo ex-Ministro Mandetta, como tendo o melhor sistema público de saúde do Brasil, e Porto Alegre, representam ilustrações patéticas e práticas de como agir de maneira errada, “mexer com quem está quieto” ou ignorar a clássica lição do futebol: “em time que está ganhando não se mexe”.
Para piorar, a pasta da Saúde foi transformada num autêntico “show de horrores”, depois da demissão de Mandetta, que esteve permanentemente em rota de colisão com o presidente, que se tornou um andarilho defensor e mensageiro do fim dos distanciamentos, abertura imediata e ampla do comércio e serviços e utilização de um remédio milagroso, a cloroquina, em contraste com recomendações técnicas e condutas econômicas dominantes no resto do mundo.
Decerto que esse tipo de perturbação serviu para enfraquecer a formulação de diretrizes e execução de medidas de combate à epidemia que pudessem incorporar as apreciáveis disparidades regionais de distribuição de renda, estrutura produtiva e social e estoque e operação de ativos hospitalares e respectiva adequação à curva evolutiva da SARS-CoV-2.
Essa distorção foi agravada pela enorme concentração de recursos tributários nas mãos da União e flagrante falta de sensibilidade e empatia do mandatário do país, que transbordou sobre parcela expressiva policy makers tupiniquins e milícias digitais, estas estimuladas pelo Palácio do Planalto, no estilo de destemidos Highlanders, dispostos a rasgar a Carta Magna e clamar fervorosamente pela intervenção militar e derrubada das instituições, e, por extensão, restauração de um regime repressor e supressor das liberdades individuais.
Outro complicador repousou na dificuldade de compreensão, por parte de uma gestão econômica conservadora – formada por arautos do ajuste fiscal, apoiada em drástica redução da presença e participação do estado nos investimentos em infraestrutura econômica e social, em favor da “eficiência dos mercados” -, acerca da insuficiência, ou até impotência, do uso de instrumentos liberais na luta contra os impactos de uma crise brotada fora do perímetro do organismo econômico convencional, preenchido por chances de ocorrência de choques de oferta e demanda.
Mais precisamente, o staff de Paulo Guedes demorou a perceber e aceitar (se é que isso aconteceu) que os reparos dos estragos provocados na saúde, produção e transações, e emprego e renda, requerem ousadas iniciativas de intervenção estatal, nos campos monetário e fiscal, de maneira semelhante – em forma, extensão e dimensão, se possível – ao empregado nos demais países atingidos pela patologia.
Por sorte, a relutância, lentidão e omissão do executivo federal foram substituídas pela posição ativa do Congresso Nacional que, rapidamente, viabilizou a aprovação de repasse direto de auxílio emergencial à população vulnerável, o socorro financeiro e suspensão da quitação dos encargos das dívidas das unidades federadas junto à União, e o Orçamento de Guerra (OG).
Ressalte-se que a concretização da assistência aos mais pobres esteve ancorada no Cadastro Único para Programas Sociais (CADÚNICO), extraordinária base para as estratégias oficiais de transferência de renda, implantadas na nação durante os 1990, nas administrações de Fernando Henrique Cardoso (FHC), e aprimoradas sob Lula, entre 2003 e 2010.
De seu turno, o OG constitui fluxo paralelo de haveres públicos que permite, aos entes governamentais, realizarem gastos incrementais quase ilimitados, diretamente ligados à minimização das mazelas geradas pela pandemia. Também propicia a atuação direta do Banco Central (BC) no mercado secundário de títulos e abre flancos para a emissão de dívida pública.
Já, as deliberações sob a responsabilidade exclusiva do governo federal, sobretudo a aprovação e liberação de crédito subsidiado destinado a assegurar fôlego financeiro às empresas, notadamente micro, pequenas e médias, apareceram apenas três meses depois da interrupção de fração expressiva dos negócios, o que representou o sacrifício de firmas e empregos. Só no final de junho de 2020, o BC lançou pacote com potencial de concessão de R$ 212 bilhões ao segmento.
Diante dessas incongruências, afigura-se pertinente o aceite das hipóteses de o Brasil vir a confirmar a ocupação da 2ª posição na classificação internacional em tamanho dos estragos causados pela Covid-19 e amargar uma das maiores quedas dos patamares de atividade, entre as economias avançadas e emergentes.
De acordo com projeções formuladas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), em junho de 2020, o PIB nacional deve encolher -9,1%, neste ano, versus -4,9%, da média mundial e -8,0%, das nações ricas, e -3,0%, das em desenvolvimento. Será a maior contração da história, ficando atrás da Espanha (-12,8%), Itália (-12,8%), França (-12,5%), México (-10,5%) e Reino Unido (-10,2%). A esperada recuperação, em 2021, com variação de 3,6% do PIB, suplantará apenas a do México (3,3%).
Trata-se de um retrato desolador se se levar em conta que, enquanto a economia global passou de discreta desaceleração cíclica para a mais profunda de depressão da história, em razão da pandemia, conformando o desenho de retomada em W, em circunstâncias de demora de descoberta e oferta da vacina em escala, o Brasil despencou no abismo, a partir da 2ª quinzena de março de 2020, após seis anos ininterruptos de recessão e estagnação, que o fizeram perder o trem da generalizada expansão que acontecia fora de suas fronteiras.
Não por acidente, segundo o BC, o país contabilizou entrada líquida de investimentos estrangeiros diretos de US$ 2,6 bilhões, em maio de 2020, configurando decréscimo de -68,7%, em comparação com o mesmo mês de 2019, US$ 8,3 bilhões, o que atesta substancial perda de apetite do mercado internacional por ativos brasileiros. Qual seria o motivo?
O artigo foi escrito por Gilmar Mendes Lourenço, que é economista, consultor, foi diretor presidente do IPARDES entre 2011 e 2014.