Gestão primitiva do combate à Covid-19 no Brasil
Em um mundo envolvido em ferrenha luta contra a pandemia do Novo Coronavírus, o Brasil vem sendo caracterizado pela incômoda constatação de ocorrência da mais intensa e extensa primeira onda de infecções e óbitos por Covid-19 e, o que é pior, com reduzidas chances de reversão em curto prazo.
Em contraste com as afirmações de poucos respeitáveis gestores públicos, até para não aprofundar o estado de pânico nas pessoas, a evolução da doença revela-se absolutamente descontrolada, provocando, dentre outras anomalias, colapso dos sistemas de saúde, incluindo equipamentos e medicamentos, de forma heterogênea pelo território nacional.
O prolongado desastre, diferentemente do verificado em praticamente todos os demais países avançados e emergentes, pode ser atribuído à insuficiência, desde o surgimento do surto, de apreciáveis esforços conjuntos entre governantes, comunidade empresarial e população em geral, na direção da viabilização de iniciativas voltadas à salvação de vidas, sobrevivência de empresas e minimização das perdas de emprego e renda das famílias.
Mais precisamente, a trajetória caótica deriva da abdicação, por parte do governo federal, da tarefa de promoção do planejamento e coordenação geral das ações dirigidas ao controle da subida do número de contágios e mortes, que pudesse servir, de forma integrada, como referência às deliberações dos entres federados, à alocação de recursos financeiros e aparato físico de suporte às ações diretamente ligadas à superação das perturbações sanitárias, à criteriosa definição e acompanhamento das restrições à mobilidade social, e às operações de socorro aos empreendedores mais afetados e à população mais vulnerável.
É notória a indisfarçável desistência do trabalho de montagem da estratégia de guerra para diminuição da velocidade de expansão da Sars-CoV-2, em simultâneo à observação da denodada dedicação de pesquisadores para a descoberta e subsequente fabricação e aplicação de imunizadores.
Não bastasse isso, o executivo federal, liderado pelo chefe de estado, minimizou a complexidade do problema e praticamente incitou a desobediência civil contra as medidas de isolamento e distanciamento social, decretadas, de maneira pouco criteriosa, por sinal, por desesperados e despreparados governadores e prefeitos.
Ademais, houve permanente empenho das autoridades palacianas em desqualificar e enfraquecer o ministério da saúde em benefício de interesses desvinculados das recomendações científicas internacionais e domésticas, englobando aquelas provenientes de estudos acabados e/ou experiências desenvolvidas por infectologistas, virologistas e sanitaristas.
Não por acaso, desde o surgimento da patologia no Brasil, a pasta teve dois titulares, que saíram (Mandetta, demitido, e Teich, pediu demissão) por discordarem das orientações do presidente, e há três meses é gerida interinamente por um militar, especialista em logística, que procura cumprir fielmente as ordens do chefe.
O exemplo patético e prático dessas incongruências repousa no desembolso de apenas 46% dos recursos aportados à saúde para cobertura de ações atreladas à perseguição de interrupção da escalada da doença, de acordo com o Tribunal de Contas da União (TCU), e no calamitoso esgotamento dos medicamentos básicos para intubação de pacientes internados em UTIs e a acumulação de estoques de hidroxicloroquina, remédio comprovadamente ineficaz contra a enfermidade.
Por outro lado, o elenco de itens de compensação, ainda que parcial, dos prejuízos econômicos e sociais provocados pelo vírus, foi edificado graças à surpreendentemente arrojada e rápida mobilização realizada pelo parlamento, em contraposição, na maioria das vezes, aos interesses embutidos na retórica ortodoxa do governo federal, ainda presa ao ajuste fiscal.
Em outros termos, não fossem as incursões incisivas do legislativo, o tecido econômico e social brasileiro estaria desprovido do auxílio emergencial às famílias pobres; do orçamento extraordinário, ou de guerra, uma espécie de “cheque em branco” para a feitura de dispêndios associados à endemia, em paralelo à execução convencional; e a ajuda a estados e municípios, por meio da transferência de verbas e suspensão de cobrança dos encargos da dívida, por seis meses.
A grande lacuna repousou na demora da disponibilização, seguida da não desobstrução dos canais de acesso às linhas de crédito especiais para as micro, pequenas e médias empresas (MPMEs) em dificuldades, que esbarraram na perversa combinação entre excessiva burocracia e exigências de garantias incompatíveis com tempos de crise e resistência das entidades financeiras no repasse dos haveres.
Tal embaraço pode ser imputado à multiplicação do risco de inadimplência por conta dos danos induzidos pelo quadro de tempestade sanitária e ao oligopólio prevalecente nas operações de captação de recursos de terceiros no Brasil, no qual cinco bancos (dois públicos e três privados) detêm mais de 80% dos ativos.
A propósito do cenário de atuação dos representantes locais, multiplicam-se lances desnorteados e desprovidos de aderência com a realidade e orientações e avaliações emitidas pelas esferas técnicas, além de fortemente sintonizadas com as demandas corporativas mais imediatas.
Considerando a permanente postura negligente na fiscalização dos isolamentos eventualmente decretados, nas cada vez menos frequentes aparições públicas de governadores, prefeitos e secretários de saúde, o destaque cabe às contradições, reclames e transferência quase que exclusiva da responsabilidade à população, pelo descumprimento do confinamento e distanciamento social e das regras de higiene e proteção individual.
Isso é particularmente preocupante em um ano de eleições municipais, que deveria enfeixar a formulação de plataformas de organização e acomodação de interesses políticos visando à constituição de arranjos consistentes e qualificados, direcionados à renovação dos parlamentos e das cadeiras de governadores e presidente da república em 2022.
No fundo, a esmagadora maioria dos integrantes da atual safra de atores políticos, de distintas vertentes, vem demonstrando diminuta competência no enfrentamento de problemas de pronunciada complexidade, como aqueles decorrentes do alastramento acelerado e descontrolado das identificações de contaminação e falecimentos pela mazela.
O artigo foi escrito por Gilmar Mendes Lourenço, que é economista, consultor, foi diretor presidente do IPARDES entre 2011 e 2014.