Preço da terra duplica no mundo e ameaça clima e produção de alimentos
Estados brasileiros tiveram variação de 200% em 10 anos
Um estudo divulgado agora expõe como a grilagem em suas variadas formas levou à duplicação dos preços médios da terra em todo o mundo de 2008 a 2022, colocando uma pressão sem precedentes sobre os produtores rurais e aumentando a concentração fundiária. No Brasil, os estados que viveram a maior especulação registraram aumento médio de 200% no preço da terra de 2008-2017, com o Maranhão vendo aumento de 451% naquele período. A América do Norte registra 20 anos seguidos de aumento no preço da terra – o Canadá viu uma alta de 12% em 2022 e mais 8% em 2023. Na Europa, o preço da terra triplicou desde 2008.
Essa corrida de preços está levando a concentração fundiária a níveis chocantes – 70% das terras agrícolas do planeta são agora controladas por apenas 1% das maiores fazendas. Na América Latina, 55% das pequenas propriedades ocupam apenas 3% da terra agrícola. Brasil e Colômbia se destacam negativamente – 1% dos proprietários colombianos dominam 80% das terras; e 0,3% dos fazendeiros brasileiros detêm 25% das terras, mostra o levantamento. Mas os pequenos produtores também estão desaparecendo na Europa, onde hoje 3% das propriedades controlam 52% das terras.
O documento foi produzido pelo IPES-Food (Painel Internacional de Especialistas em Sistemas Alimentares Sustentáveis), um think tank que reúne especialistas em produção de alimentos, uma das áreas mais implicadas na mudança do clima e das menos discutidas nos acordos globais, tradicionalmente mais focados nos temas de energia.
O painel de especialistas afirma que a pressão sobre a terra está tornando cada vez mais inviável a produção de alimentos em pequena e média escalas, inflamando desigualdades, revoltas de agricultores, êxodo rural, pobreza rural e insegurança alimentar. Enquanto o encarecimento da terra neste século foi observado mais fortemente na África e na América Latina, a desigualdade no acesso a terras está crescendo mais rapidamente agora na América Latina e do Norte, na Europa Central e Oriental e no Sudeste Asiático.
Entre os mecanismos que estão contribuindo para esta escala alarmante de concentração fundiária, o relatório aponta a ‘grilagem verde’, a produção intensiva de culturas para exportação, instrumentos financeiros opacos e de especulação e a compra para extração rápida de recursos do solo.
“As terras agrícolas não são mais propriedade dos agricultores, estão nas mãos de especuladores, fundos de pensão e grandes empresas agrícolas que buscam lucrar. Os preços das terras aumentaram tanto que está se tornando impossível sustentar-se com a agricultura”, avalia Nettie Wiebe, especialista do IPES-Food Canadá. “Isso está atingindo um ponto crítico – a agricultura em pequena e média escala está simplesmente sendo excluída.”
Grilagem verde
O estudo chama de “grilagem verde” a apropriação de terras para projetos de compensação de emissões, como os créditos de carbono, além de projetos de biocombustíveis e/ou biomassa. Desde 2000, o equivalente a duas vezes o tamanho da Alemanha foi apropriado por meio de acordos transnacionais nesses temas, sendo que 87% dessas terras tomadas são regiões de alta biodiversidade, como florestas.
Sozinhas, as promessas de governos para remoções de carbono baseadas no uso da terra totalizam atualmente quase 1,2 bilhão de hectares, equivalente à área total de terras agrícolas globais. Os mercados de compensação de carbono devem quadruplicar nos próximos 7 anos, preveem os especialistas.
“A corrida por projetos de carbono duvidosos, esquemas de plantio de árvores e combustíveis supostamente limpos está deslocando agricultores em pequena escala e povos indígenas”, afirma Susan Chomba, especialista do IPES-Food Quênia. “Governos poderosos, empresas poluentes de combustíveis fósseis e grandes grupos de conservação estão se infiltrando em nossas terras sob a aparência de metas verdes, ameaçando diretamente as comunidades que estão sofrendo com as mudanças climáticas.”
Para João Pedro Stédile, líder histórico do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), a tentativa de usar as florestas como crédito de carbono é absurda. “Não se pode usar a natureza que já existe e tentar ganhar dinheiro com o oxigênio gerado por elas. Deveria ser proibido. Nós precisamos ir no sentido contrário, criando um grande programa que proíba todo e qualquer desmatamento e um programa mundial de reflorestamento. Plantar árvores, de forma permanente, em todos os países, em todos os locais, árvores nativas e frutíferas. Só assim salvaremos o planeta e combateremos a fome”, afirma.
Brancos e gringos
No caso brasileiro, o documento ressalta a desigualdade de raça no acesso à terra, reconhecendo o impacto de legislações que impediram o acesso à terra por pessoas não brancas após a abolição do regime de escravidão no país. Hoje, apenas 20% dos proprietários brasileiros de terras entre 1000-10.000 hectares são negros; e somente 12% no caso de propriedades maiores do que isso, apesar de a maioria dos produtores rurais do país serem negros ou pardos (2,6 milhões contra 2,2 milhões brancos).
Além das leis segregacionistas do final do século 19, o relatório explica este cenário devido à aliança dos sucessivos governos com o grande agronegócio que acabou por bloquear as reivindicações de terras das comunidades negras tradicionais, como os quilombos, revogou titulações e impediu reformas agrárias efetivas.
O documento alerta ainda para esquemas fraudulentos de compra de terras por entes estrangeiros, contornando a legislação. Entre os exemplos, o relatório cita a BrasilAgro, uma empresa com capital dos Estados Unidos e da Argentina e que foi acusada de burlar a lei para adquirir terras no Brasil, além de desmatar vegetação nativa.
“O estado do Maranhão vem passando por um processo com a chegada de empresários de fora {..} que, seja pelo processo de compra ou seja pela grilagem, estão se apossando dos territórios. Eles estão derrubando as florestas nativas, em particular as matas do Cerrado e os babaçuais, para dar lugar à monocultura, principalmente da soja, além da presença muito forte da pecuária. E isso se dá num momento de flexibilização das legislações ambientais do estado, com destaque para a Lei de Terras, que eu chamo de ‘lei da grilagem’, que vai possibilitar a tomada de terras públicas por quem tem mais dinheiro”, explica produtora rural Ariana Gomes, secretária executiva da Rede de Agroecologia do Maranhão (Rama) ao comentar os dados do relatório sobre o aumento de 451% no preço das terras do estado.
“Todo esse processo de especulação já está afetando a produção de arroz, milho, mandioca e legumes. E com isso estamos preocupados com a possibilidade real de aumento da fome aqui no estado do Maranhão”, lamenta Gomes.
Tendência global
O relatório do IPES-Food é apresentado em um momento em que as questões fundiárias estão ganhando destaque na agenda global. O Banco Mundial, por exemplo, realizará a conferência sobre ‘Garantia de Posse de Terra e Acesso para ação climática’ em Washington DC esta semana, na qual devem citar os dados de um estudo recente do próprio Banco indicando a necessidade de medidas urgentes para reduzir a conversão de florestas em áreas agrícolas. Ao mesmo tempo, o Brasil lança uma política de reforma agrária ‘Terra da Gente’, que visa assentar 295 mil famílias até 2026.
Entre as recomendações para mitigar a disparadas dos preços da terra e a concentração fundiária, o IPES-Food cita justamente uma nova geração de reformas agrárias em todo o mundo e o incentivo a propriedades coletivas e outras formas inovadoras de titulação, além de financiamento voltado ao meio ambiente e igualdade no campo.
“A financeirização e liberalização dos mercados de terras estão arruinando os meios de subsistência e ameaçando a segurança alimentar. O Banco Mundial e os tomadores de decisão globais não estão prestando atenção de fato”, protesta Sofía Monsalve Suárez, especialista do IPES-Food Colômbia.
“Nesta era de turbulência econômica, enormes extensões de terras estão sendo adquiridas como se não houvesse amanhã por governos, corporações e especuladores. Agricultores, camponeses e comunidades indígenas estão sendo pressionados por todos os lados – perdendo suas terras, meios de subsistência, raízes ancestrais e culturais, e minando sua capacidade de produzir alimentos de forma sustentável. Eles precisam ter uma verdadeira capacidade de influenciar a governança da terra”, defende Shalmali Guttal, especialista do IPES-Food Índia.