Vitalidade do parlamentarismo de extorsão brasileiro

Vitalidade do parlamentarismo de extorsão brasileiro
Gilmar Mendes Lourenço.

É inegável que a democracia brasileira atravessa um estágio bastante delicado, marcado pelo adensamento dos embates políticos, ideologizados de forma primitiva, em uma interpretação fidalga, e energizados pelo efeito multiplicador das desinformações, catapultadas no terreno arenoso das mídias digitais, comandadas por verdadeiros fanáticos ou rebeldes, portadores de causas bizarras e pouco justificáveis.

Por incontáveis motivações, o processo de polarização, gestado com as manifestações de rua de 2013, caracterizado pela solicitação de passagem da ultra direita, alargado e aprofundado com o impedimento e deposição da presidente Dilma Rousseff, em 2016, e a condenação em segunda instância e prisão do ex-incumbente Lula e, maximizado com a eleição de um outsider ao posto presidencial, em 2018, e o retorno triunfal do ex-mandatário, isento das penalidades, em 2022, permanece intacto mesmo depois da resposta pragmática emitida pelas urnas, no pleito para prefeitos e vereadores, em 2024.

Para piorar, nas diferentes instâncias de poder, as maiores autoridades têm colaborado decisivamente para a intensificação e alastramento de eventos transmissores de caos, mediante iniciativas e pronunciamentos absolutamente desalinhados dos anseios, interesses e demandas expressas pelos agentes sociais.

Bastaria o levantamento e apresentação de alguns poucos exemplos acerca de posturas e afirmações, proferidas por entes da cúpula dos três poderes, para constatar os permanentes compromissos com a exacerbação do clima de flerte com o descumprimento das regras democráticas, escritas ou informais, o que, aparentemente, atende aos propósitos de degradação da incompreensão e, principalmente, insatisfação da sociedade.

Em posição quase absolutista, o judiciário vem se esmerando em produzir interpretações alternativas das leis, focada na derrubada, via efeito dominó, de inúmeras condenações e punições, curiosamente endossadas ex ante. Só falta as deliberações virem acompanhadas de pedidos de desculpas por danos provocados, principalmente quanto às designações de devolução de apreciáveis quantias de recursos financeiros à vítima, no caso o erário, por meio da celebração de delações premiadas e outros reconhecimentos de responsabilidade criminal.

Em outra linha, as peças maiores do judiciário adotam procedimentos de postergação da avaliação e posicionamento acerca das vultosas somas mensais recebidas por juízes, desembargadores e procuradores, que suplantam o teto constitucional, que, por absurdo, na maioria das ocasiões, amparam-se em inúmeros penduricalhos legais.

Na órbita da chefia do executivo, a despeito das modificações introduzidas na área de comunicação com a população, voltadas à produção de conteúdos leves e dirigidos às pessoas comuns, observa-se a manutenção da estratégia de ocupação perene dos palanques eleitorais, o que exige inclinações à “fraquejadas” na retórica da estabilização macroeconômica.

Praticamente dia após dia prevalecem investidas de entes de elevada e média densidade política contra a perseguição da solvência fiscal intertemporal, defendida e carregada pelos Ministérios da Fazenda e Planejamento, preocupados com a subida da dívida pública, dos juros e da inflação.

A propósito da desgarrada inflacionária verificada desde o último trimestre de 2024 – desagradável para qualquer governo, mas, sobretudo, para os populistas – derivada do choque de custos dos alimentos, por conta das interferências das drásticas mudanças climáticas, alternando excesso de chuvas e secas prolongadas, a recomendação de boicote aos produtos mais caros, recomendada por Lula 3½, beira ao ridículo.

Parece oportuno lembrar que esse expediente integra a rotina dos consumidores brasileiros, notadamente aqueles do piso da pirâmide de rendimentos, ocupados com a árdua tarefa de cumprimento dos orçamentos domésticos mensais e minimização da utilização de crédito, normalmente a um preço exorbitante, destinado ao fechamento transitório das contas.

Aliás, esse tipo de procedimento defensivo transformou-se em movimento nacional, denominado “mude de marca”, liderado pelas donas de casa do Rio Grande do Sul, em janeiro de 1999, por ocasião da introdução de ajustes no Plano Real que incitou a disparada especulativa do dólar e, por extensão, a generalização de remarcações de preços absolutamente despropositadas.

Portanto, as correntes contrárias ao ajuste fiscal, hospedadas no entorno imediato do chefe de estado, municiadas pela arrogante tática baseada no desgastado e equivocado slogan “gasto é vida”, repetida por expoentes do Partido dos Trabalhadores (PT), controlado por quadros ultrapassados, e no “fisiologismo das farra das emendas”, prevalecente no legislativo, deveriam perceber e se esforçar para reverter a ampliação das chances de perda de controle macroeconômico, em caso de perpetuação das desconexões com a realidade, apoiadas na premissa de infinitude das despesas públicas, enaltecida por seres distantes da literatura econômica.

Já no que se refere às verbalizações destituídas de racionalidade emanadas das cabeças representantes do Congresso Nacional, saltou aos olhos as declarações do recém-empossado na presidência da Câmara dos Deputados, Hugo Motta, do Republicanos da Paraíba (PB) – eleito com adesão generalizada, abarcando até os extremos da esquerda e direita -, em entrevista concedida à Rádio Arapuan FM, de João Pessoa (PB), em sete de fevereiro de 2025.

Inadvertidamente, o parlamentar destacou firme convicção de ausência de tentativa de golpe de estado, nos atos praticados pelos insurgentes inconformados com os resultados das urnas eletrônicas de novembro de 2022, no afã de subversão da vontade do povo, que culminaram, diante da passividade dos agentes de segurança, na vandalização das instalações dos prédios da Praça dos Três Poderes, em Brasília, em oito de janeiro de 2023.

Por uma perspectiva interpretativa otimista, é razoável supor a mistura de empolgação inicial e desconhecimento da marcha da conjuntura política e institucional nacional, sentenciando a falta de um líder e de apoio de outras instituições, por parte do jovem deputado de apenas 35 anos de idade, pertencente a uma tradicional família do município de Patos, na PB.

A avó, Francisca Motta – protagonista da visita de Motta e Davi Alcolumbre (do União Brasil do Amapá, novo presidente do Senado) a Lula, ao dizer que sufragou o atual presidente desde 1989 -, já chefiou a prefeitura, e o pai, Nabor Wanderley, exerce o cargo de prefeito pela quarta vez.

Motta foi selecionado criteriosamente à sucessão por Arthur Lira e começou a transitar pelas estradas da política nacional com as bençãos do deputado federal Eduardo Cunha, o presidente da Câmara que acatou a solicitação de impedimento de Dilma Rousseff, depois da negativa da presidente de concessão de apoio no processo que Cunha respondia no Conselho de Ética da Casa.

Tal deslize de Motta soaria ao menos estranho para o postulante vencedor ao cargo de substituto imediato do chefe de estado (presidente e vice) e proprietário da caneta habilitada à acolhida de encaminhamento formal de um eventual processo de impeachment.

Uma leitura atenta do relatório final da Comissão Mista Parlamentar de Inquérito (CPMI) dos atos golpistas, publicado em outubro de 2023, depois de cinco meses de investigação, apreciação de documentos e oitivas de testemunhas, permite apreender a ocorrência de somente “uma das cenas” orquestradas contra o Estado Democrático de Direito e não uma mera ação de “revoltados”, devotos de alguma causa, coisa ou de alguém.

Conforme menção do Ministro Alexandre Moraes, não se tratou de uma caravana para um “domingo no parque” e, mais importante do que a identificação, investigação, detenção e julgamento dos participantes dos atos de depredação, seria a descoberta dos funcionários e proprietários do parque.

Diga-se de passagem, que, em depoimento à Comissão, o ex-comandante de Operações da Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF), Jorge Eduardo Naime, mencionou a dedicação para desmobilização do acampamento em frente ao Quartel General (QG) do Exército, obstaculizada por uma linha de blindados reserva à proteção dos manifestantes.

Acrescente-se ainda que, até aqui, a Suprema Corte oportunizou a liberdade para mais de 500 participantes da invasão das instalações, por acordo de não persecução, e sentenciou 375 a penas que variam entre 3 e 17 anos de reclusão. Destes últimos, razoável fração não se livrou em face da recusa da obrigatoriedade de abstinência temporária das mídias sociais e submissão a cursos de reciclagem democrática.

A inadmissível lacuna de sapiência do novo titular da Câmara se estende à aparente ignorância da acusação da Polícia Federal (PF) de que o candidato fracassado nas eleições de 2022 “capitaneou” uma organização criminosa, concentrada no projeto de recolocá-lo no poder por meio da decretação de um golpe de estado, planejado por células militares que, inclusive, incitaram a formação e preservação ad eternum dos acampamentos.

No entanto, por uma análise realista, que é o que importa, o terraplanismo golpista e a consideração de exagero das condenações e do timing de inelegibilidade estipulado pela Lei da Ficha Limpa (com a proposição de diminuição de oito para dois anos, o que configuraria um incentivo aos infratores, preponderantemente um determinado agente político), esboçado pelo chairman da Câmara, podem ser tomadas como ameaças corporativas veladas.

No fundo, o desapreço ao tratamento punitivo subjacente ao desprezo da estabilidade institucional traduz um legislativo incomodado com a insistência na colocação de restrições à dimensão e falta de transparência das emendas, que abocanham mais de 20% dos haveres destinados às despesas não obrigatórias da União, por parte do Supremo Tribunal Federal (STF).

Resta aguardar a montagem e a definição de rumos da nova matriz política, sob a responsabilidade da dupla Alcolumbre e Motta, membros do anabolizado Centrão, que passou de figurante a ator principal na dinâmica legislativa nacional, com presença central na preparação e implementação da peça orçamentária, desde o final dos anos 2010.

O cenário provável delineia a preservação da governabilidade em 2025, em troca da abertura dos canais de intervenção na máquina pública, precificada na conquista de pastas ministeriais relevantes, cargos e polpudas verbas, sem a estipulação de qualquer garantia de permanência no barco da vasta coalizão, em 2026, fortemente condicionada ao binômio formado por desempenho da economia e aprovação popular à gestão do executivo.

Decerto que esse imbróglio não constitui obra de ficção e qualquer semelhança com episódios recentes exibidos pela Nova República, em vez de representar mera coincidência, reflete a crescente vitalidade do parlamentarismo de extorsão, impregnado nas entranhas da jovem democracia brasileira, que completará oficialmente quatro décadas, em março de 2025, e equipado de instrumentos que lhe conferem feições e demonstrações cada vez mais distantes das legitimas aspirações de desenvolvimento inclusivo.

O artigo foi escrito por Gilmar Mendes Lourenço, que é economista, consultor, Mestre em Engenharia da Produção, ex-presidente do Instituto Paranaense de Desenvolvimento econômico (Ipardes), ex-conselheiro da Copel e autor de vários livros de Economia.Instituto Paranaense de Desenvolvimento econômico (Ipardes), ex-conselheiro da Copel e autor de vários livros de Economia.

Mirian Gasparin

Mirian Gasparin, natural de Curitiba, é formada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pela Universidade Federal do Paraná e pós-graduada em Finanças Corporativas pela Universidade Federal do Paraná. Profissional com experiência de 50 anos na área de jornalismo, sendo 48 somente na área econômica, com trabalhos pela Rádio Cultura de Curitiba, Jornal Indústria & Comércio e Jornal Gazeta do Povo. Também foi assessora de imprensa das Secretarias de Estado da Fazenda, da Indústria, Comércio e Desenvolvimento Econômico e da Comunicação Social. Desde abril de 2006 é colunista de Negócios da Rádio BandNews Curitiba e escreveu para a revista Soluções do Sebrae/PR. Também é professora titular nos cursos de Jornalismo e Ciências Contábeis da Universidade Tuiuti do Paraná. Ministra cursos para empresários e executivos de empresas paranaenses, de São Paulo e Rio de Janeiro sobre Comunicação e Língua Portuguesa e faz palestras sobre Investimentos. Em julho de 2007 veio um novo desafio profissional, com o blog de Economia no Portal Jornale. Em abril de 2013 passou a ter um blog de Economia no portal Jornal e Notícias. E a partir de maio de 2014, quando completou 40 anos de jornalismo, lançou seu blog independente. Nestes 16 anos de blog, mais de 35 mil matérias foram postadas. Ao longo de sua carreira recebeu 20 prêmios, com destaque para o VII Prêmio Fecomércio de Jornalismo (1º e 3º lugar na categoria webjornalismo em 2023); Prêmio Fecomércio de Jornalismo (1º lugar Internet em 2017 e 2016);Prêmio Sistema Fiep de Jornalismo (1º lugar Internet – 2014 e 3º lugar Internet – 2015); Melhor Jornalista de Economia do Paraná concedido pelo Conselho Regional de Economia do Paraná (agosto de 2010); Prêmio Associação Comercial do Paraná de Jornalismo de Economia (outubro de 2010), Destaque do Jornalismo Econômico do Paraná -Shopping Novo Batel (março de 2011). Em dezembro de 2009 ganhou o prêmio Destaque em Radiodifusão nos Melhores do Ano do jornal Diário Popular. Demais prêmios: Prêmio Ceag de Jornalismo, Centro de Apoio à Pequena e Média Empresa do Paraná, atual Sebrae (1987), Prêmio Cidade de Curitiba na categoria Jornalismo Econômico da Câmara Municipal de Curitiba (1990), Prêmio Qualidade Paraná, da International, Exporters Services (1991), Prêmio Abril de Jornalismo, Editora Abril (1992), Prêmio destaque de Jornalismo Econômico, Fiat Allis (1993), Prêmio Mercosul e o Paraná, Federação das Indústrias do Estado do Paraná (1995), As mulheres pioneiras no jornalismo do Paraná, Conselho Estadual da Mulher do Paraná (1996), Mulher de Destaque, Câmara Municipal de Curitiba (1999), Reconhecimento profissional, Sindicato dos Engenheiros do Estado do Paraná (2005), Reconhecimento profissional, Rotary Club de Curitiba Gralha Azul (2005). Faz parte da publicação “Jornalistas Brasileiros – Quem é quem no Jornalismo de Economia”, livro organizado por Eduardo Ribeiro e Engel Paschoal que traz os maiores nomes do Jornalismo Econômico brasileiro.

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