Contas laranjas ajudam a lavar trilhões e tornam o Brasil alvo do crime organizado

Estudo internacional mostra como falta de punição favorece uso de contas de passagem por organizações criminosas
Em meio ao crescimento avassalador da economia paralela do crime organizado, o sistema financeiro brasileiro enfrenta um dos seus maiores desafios: o uso desenfreado de contas laranjas. Essas contas, abertas ou usadas por terceiros com o intuito de ocultar a origem de valores ilícitos, têm se tornado a pedra angular de uma rede global de fraudes, tráfico de drogas, lavagem de dinheiro e cibercrimes.
Segundo o Global Mules Report 2024, divulgado pela empresa de segurança digital BioCatch, mais de US$ 3,1 trilhões circularam em dinheiro ilegal pelo sistema financeiro global no último ano. E uma parte importante dessa cifra passou pelas quase 2 milhões de contas laranjas identificadas em 257 instituições financeiras de 21 países. O Brasil ocupa posição de destaque nessa estatística — mas pelas razões erradas.
No país, a fragilidade da legislação penal aliada à ausência de mecanismos eficazes de responsabilização tornou o uso dessas contas uma estratégia de baixo risco e alto retorno para criminosos. Enquanto nos Estados Unidos a pena média por lavagem de dinheiro gira em torno de 71 meses de prisão, e pode chegar a 14 anos no Reino Unido ou até prisão perpétua na Austrália, o Brasil carece de um sistema que puna diretamente o usuário ou cúmplice da conta de passagem.
“A ausência de punições efetivas cria um incentivo econômico para o uso de contas laranjas”, afirma Cassiano Cavalcanti, Diretor de Pré-Vendas LATAM da BioCatch. “Isso não apenas favorece fraudes e golpes, mas também permite que crimes como tráfico de drogas e sequestros continuem se expandindo pelo país.”
Dados reforçam dimensão do problema
De acordo com o relatório de Identidade Digital e Fraude 2025, do Serasa Experian, 51% dos entrevistados já foram vítimas de fraudes — um aumento significativo em relação aos 42% registrados no ano anterior. Entre as principais modalidades, o uso de contas laranja aparece como um fator crítico, com golpes envolvendo boletos falsos ou Pix fraudulento representando 32% dos casos.
Os impactos financeiros são expressivos: 54% dos que sofreram fraudes relataram perdas, sendo que 52% perderam até R$ 500, e 20% tiveram prejuízos entre R$ 1.000 e R$ 5.000. Entre os mais jovens, esse número sobe para 26%.
Dados do relatório 2024 Digital Banking Fraud Trends in Brazil, da BioCatch, reforçam a vulnerabilidade do ambiente digital: 90% das fraudes ocorrem em dispositivos móveis, e mais de 70% das perdas financeiras em 2022 foram via Pix. No total, os golpes resultaram em um prejuízo de US$ 500 milhões no Brasil.
Para Cavalcanti, a falta de conscientização e a facilidade na criação de contas digitais impulsionam esse cenário. “Os criminosos aproveitam brechas na segurança digital para usar contas laranja como meio para lavagem de dinheiro e fraudes bancárias. A população precisa estar atenta a golpes de engenharia social, e as empresas devem investir em tecnologias mais robustas de autenticação e monitoramento”.
Além disso, a percepção de segurança caiu sete pontos percentuais entre 2023 e 2024, enquanto a expectativa sobre a responsabilidade das empresas aumentou: 86% dos entrevistados acreditam que as companhias devem garantir a proteção dos dados de seus clientes.
Contas laranjas: o elo crucial da cadeia criminosa
Fundamentais ao funcionamento da economia informal, essas contas operam como estruturas de dissociação entre o crime e o dinheiro, permitindo que quantias bilionárias transitem por caminhos digitais quase invisíveis. O próprio conceito da conta laranja evoluiu. Hoje, cerca de 70% delas são alugadas com ciência ou participação do titular.
Os outros 30% são resultado de fraudes de identidade, com CPFs e dados pessoais utilizados por quadrilhas especializadas. Estima-se que mais de 1,6 milhão de brasileiros tenham “emprestado” seus dados para outra pessoa movimentar dinheiro em seu nome.
Ausência de responsabilização institucional
A fragilidade do sistema bancário brasileiro no enfrentamento de contas laranjas acaba favorecendo, ainda que de forma indireta, a atuação do crime organizado. Em alguns países, parte do prejuízo com fraudes recai sobre a instituição que recebe os valores, o que força bancos a adotarem sistemas mais robustos de prevenção e controle de contas de passagem.
“A responsabilização das instituições que atuaram como intermediárias desses valores pode ser uma estratégia eficaz para transformar o sistema em um verdadeiro filtro mais eficiente contra crimes financeiros”, sugere Cavalcanti. “Sem a devida responsabilização, o sistema pode ter incentivos financeiros que favoreçam comportamentos inadequados.”
Outro caminho defendido por especialistas é o compartilhamento de dados entre bancos para aumentar a eficácia e a velocidade na detecção de padrões fraudulentos. Embora essa colaboração já esteja em fase inicial no Brasil, ela ainda é restrita e enfrenta dificuldades operacionais e regulatórias.
Uma rede multifacetada com implicações nacionais
A questão, porém, não é apenas financeira — é também estruturante. Organizações criminosas presentes em território nacional operam como verdadeiras multinacionais do ilícito: controlam territórios, exploram recursos e utilizam o sistema financeiro legítimo para lavar capital. Na Amazônia Legal, por exemplo, estima-se que um terço das cidades esteja sob influência direta ou indireta desses grupos, alimentados por atividades como garimpo ilegal, tráfico de drogas e crimes ambientais.
A recente operação Jackal III, coordenada pela INTERPOL, fechou 720 contas bancárias ligadas ao crime organizado e prendeu mais de 300 pessoas associadas a grupos da África Ocidental. No Brasil, movimentos semelhantes têm avançado, mas ainda a passos lentos diante da gravidade.
“Estamos longe de solucionar o problema”, reconhece Cavalcanti. “Isso reforça a urgência de o país fortalecer suas ferramentas de inteligência em rede e ampliar o uso massivo de dados para prevenir e reprimir a utilização do sistema bancário por organizações criminosas.”
Um risco ao futuro
O avanço do crime financeiro moderno é impulsionado por tecnologia, conectividade e anonimato digital. Ao permitir que contas laranjas permaneçam como pontos cegos do sistema financeiro, o Brasil se posiciona como alvo preferencial do crime organizado internacional.
“O uso de tecnologia por criminosos está tornando essas atividades mais sofisticadas e difíceis de rastrear”, alerta Cavalcanti. “Sem uma colaboração internacional eficiente e sem legislações mais duras, corremos o risco de ver um crescimento acelerado desse problema nos próximos anos.”
A postura do país diante desse desafio será determinante. As escolhas feitas agora — no Judiciário, entre reguladores, no Congresso e no setor financeiro — definirão se o Brasil poderá conter a escalada da chamada Dark Economy, ou se continuará sendo um elo vulnerável na cadeia global do crime organizado.