Isolacionismo Trumpista: mais um produto das “Organizações Tabajara”

Gilmar Mendes Lourenço.
O programa “Casseta & Planeta, Urgente!”, apresentado pela Rede Globo de Televisão, entre 1992 e 2000, reunindo um maravilhoso grupo de humoristas, radicalmente irreverentes em múltiplos assuntos, em especial na sátira política aos chefes de estado, lançou um espaço de entretenimento denominado “Organizações Tabajara”, empresa fictícia dedicada a descobrir e divulgar soluções para qualquer tipo de problema, de unha encravada a consumo excessivo de bebida alcoólica e energia elétrica.
Decerto que a forma e o conteúdo da cerimônia, realizada em 02 de abril de 2025, destinada ao anúncio do decreto presidencial do tarifaço a ser aplicado pelo governo do republicano Donald Trump aos demais países do mundo, incluindo parceiros estratégicos e históricos, recheado de referências pejorativas e ofensivas a vários dirigentes nacionais, mereceria ocupar um lugar de supremo destaque na vitrine daquela companhia imaginária.
Tratou-se da explicitação dos resultados, em uma tabela de botequim, produzidos mediante o emprego de uma “fórmula mágica” – cujo uso inadequado envergonharia qualquer iniciante em matemática – sobre saldos comerciais e tarifas de importações aleatórias, que seriam, por suposto, cobradas pelas demais nações sobre produtos provenientes dos Estados Unidos (EUA).
É absolutamente incomum o desencadeamento de uma orientação econômica com falhas tão primitivas – fruto da hipótese de que a população do resto do mundo e não os consumidores americanos pagarão a conta -, a ponto de a avaliação da secular revista inglesa The Economist, cravar que as providências sintetizam “o erro econômico mais profundo, danoso e desnecessário da era moderna”.
O cálculo insano, improvisado e carente de qualquer resquício de princípios científicos mais elementares, impôs a divisão por dois do quociente entre o déficit da balança comercial, amargado pelos EUA com cada país, pelo respectivo valor importado em dólares, o que sugeriria a generosidade trumpista.
Isso significa que, como penalização pela “canalhice” cometida pelos vendedores internacionais contra os norte-americanos, desde a criação das instituições de estabilização do pós-segunda guerra mundial, corroborada pelo rearranjo promovido pela globalização dos anos 1990, os produtos não estadunidenses ingressantes no país passarão a ser sobretaxados em aproximadamente a metade do que os vendedores “usurpam” do tio Sam, segundo o sofisticado modelo Tabajara.
Os alvos privilegiados das alíquotas incrementais foram Vietnã (46%), China (34%), Taiwan (32%), África do Sul (30%), Índia (26%), Coreia do Sul (25%), Japão (24%), União Europeia (20%) e Israel (17%), sendo que os que experimentam déficit comercial com os EUA foram contemplados com tarifa extra mínima de 10%, como será o caso do Brasil. Aconteceu também a estipulação de tarifas setoriais de 25% para as importações de aço e alumínio e carros e autopeças.
Assim, a alíquota média dará um salto de 9% para a faixa entre 19% e 25%, depois do formato definitivo, ainda não declarado, sendo o maior nível desde o século 19, suplantando inclusive os resultantes das exacerbadas condutas protecionistas da década de 1930, durante a Grande Depressão.
Pela lógica de Trump, por meio do uso incisivo desse ferramental, mesmo na escancarada ausência de uma agenda tributária e de desregulamentação, a disfunção crescente e crônica expressa na desindustrialização endógena desaparecerá em médio e longo prazo, amparada em vultosos investimentos de corporações nacionais e estrangeiras em território americano.
Esse evento ocorrerá em estrita obediência ao propósito de reedição do paradigma de substituição de importações, adotado notadamente por estados avançados e do terceiro mundo, no século 20, como escapatória das agruras provocadas pela grande depressão de 1929, antes citada.
Se não representar somente um elemento espalhafatoso e atabalhoado, voltado à abertura de negociações visando à correção de eventuais desavenças, bastante comuns nas relações comerciais entre nações e blocos econômicos, e, o que é pior, for levada a sério e adiante, a estratégia proclamada no “Dia da Libertação”, batizado por Trump, ou da emergência nacional, tem tudo para dar com os burros n´água.
Em sendo o conjunto de absurdos implementado, parece lícito antever a conformação de um colossal desarranjo na ordem econômica mundial, já suficientemente abalada por apreciável rearrumação geopolítica – com a solicitação de passagem da China, no sentido da disputa da hegemonia com os EUA, coadjuvada pelo estreitamento de laços com a Rússia -, agravada pela eclosão e perenização de conflitos bélicos, em atendimento aos interesses dos fabricantes de armamentos e equipamentos de guerra.
Na verdade, não há a menor chance de o inevitável desmanche da operação sincronizada das complexas cadeias produtivas globais – com redes de suprimento de matérias primas, componentes e bens finais espraiadas pelo mundo e com forte especialização do sudeste asiático em atividades portadoras de maior densidade tecnológica – duramente retomada depois do timing prolongado da pandemia de Covid-19, não vir a se traduzir em descontrole inflacionário e pronunciada retração dos níveis de atividade.
Seria o perverso retorno daquilo que os economistas rotulam como estagflação, ou a incômoda convivência entre escalada da inflação e recessão, com reflexos negativos sobre os patamares de emprego e rendimentos das famílias e receitas e lucros das empresas, constituindo um círculo vicioso que interfere de maneira desfavorável no ambiente de negócios e na demanda por investimento.
Convém sublinhar que as arrojadas iniciativas coordenadas e/ou induzidas por governantes, estimuladoras da troca das compras internacionais por produção doméstica, exerceram papel destacável no progresso de países de industrialização retardatária no século passado, completando o circuito da segunda revolução, dominada pelos segmentos da petroquímica e metalmecânica.
Porém, é prudente registrar que a “perda de mão” com o pronunciado protecionismo subjacente à viabilização daquele empreendimento deixou rigorosamente, em todos os casos, um legado de ineficiência empresarial e compadrio com governos, que culminaram na combinação de ascensão e persistência da inflação, chegando ao limite da hiperinflação, endividamento externo e falência do estado desenvolvimentista.
A execução da receita neoliberal aprovada pelo Conselho de Washington, no final da década de 1980, testada anteriormente pela administração Reagan, nos EUA, e Thatcher, no Reino Unido, centrada na desregulamentação e liberalização dos mercados comerciais e financeiros e privatizações, em regime de globalização da terceira revolução industrial – apoiada na biotecnologia, química fina, mecânica de precisão, novos materiais e microeletrônica – enterrou a onda protecionista e incitou o aprofundamento do multilateralismo.
Aparentemente, a equipe Tabajara de Trump, desconhece a evolução da trajetória pretérita, remota e recente. Tanto é assim que, em seu primeiro mandato, compreendendo o intervalo entre 2016 e 2019, dotado de menor retaguarda eleitoral e parlamentar, o mandatário americano peleou permanentemente com a China, em nome do revigoramento do “cinturão da ferrugem”, palco de unidades industriais dos EUA que desistiram de operar abaixo do ponto de equilíbrio e foram atraídas pelos reduzidos custos do gigante asiático e outros “tigres” regionais.
O time trumpista também ignora a natureza inexequível da substituição de importações sob o domínio da quarta revolução tecnológica, puxada por inteligência artificial, robótica e processos digitais, que, por sinal, transformou as escolhas locacionais mais exigentes na obtenção de ganhos de produtividade e menos subordinadas aos determinantes ou raízes físicas e às vantagens comparativas decorrentes de fatores tradicionais, como mão de obra e matéria prima.
Sem contar que o grupo de trapalhões aparenta desconhecer outros dois importantes ensinamentos da experiência histórica: déficits comerciais podem não constituir prejuízos agregados, contrariando a anacrônica premissa mercantilista; e a imposição isolacionista e autárquica substitutiva de importações não gera a contrapartida automática de supressão da necessidade de efetivação de novas aquisições internacionais.
Até porque, a marcha substitutiva pode ensejar a precipitação de demandas derivadas por outras importações, normalmente mais exigentes em sofisticação e incorporação e difusão tecnológica e, por extensão, a alavancagem de maior montante de recursos financeiros, o que pode, inclusive, provocar pronunciada ampliação do rombo das contas externas.
Só a título de exemplo, metade dos veículos automotores consumidos pela população americana é fabricada fora dos EUA e a parcela produzida internamente depende do fornecimento internacional de cerca de 80% dos insumos e outros itens para as linhas de montagem.
Sintomaticamente, as principais economias do planeta acusaram o golpe e reagiram instantaneamente à verdadeira intimidação unilateral levantada pelo tarifaço de Trump e buscarão a rápida descoberta (e penetração) de mercados alternativos de origem e destino de produtos e serviços, principalmente China, demais asiáticos e União Europeia.
Por enquanto, desenham-se soluções de alianças tidas como politicamente impensadas, como a articulação conjunta entre China, Coreia do Sul e Japão, para marcação de retaliações, e contundentes respostas do Conselho Europeu, notadamente a agilização dos acordos comerciais já celebrados ou em negociação, como a conclusão do acerto entre União Europeia (UE) e o Mercosul, que, agrupados, possuem 718 milhões de habitantes e produto interno bruto (PIB) de US$ 22 trilhões, pouco inferior ao dos EUA.
O revide ou a devolutiva chinesa também esboçou magnitude de 34%, o que contou com a tréplica de Trump, denotando nova sobretaxação de 50% e suspensão das negociações solicitadas pela diplomacia asiática se não houver a retirada da desforra até 08 de abril de 2025.
Nas circunstâncias atuais, soa prematura a montagem de cenários ancorados nos diferenciais de magnitude dos acréscimos de tarifas entre os países, definidores da ocupação competitiva da fronteira americana, com o encarecimento das compras externas, e de outros vastos mercados afetados, com o maior preço dos produtos vindos dos EUA.
Isso porque, salta aos olhos o caráter ainda embrionário das tratativas buscando a amenização ou até a eliminação dos conflitos, as dúvidas quanto à dimensão da reação dos consumidores americanos e à posição dos parlamentares republicanos ante os lobbies dos segmentos penalizados, e o vazio generalizado de compreensão acerca do tamanho da vantagem concorrencial asiática, mesmo com o tarifaço.
Por enquanto, os embaraços e oportunidades mais nítidas repousam na retração da participação no mercado americano de sapatos femininos made in China e de calçados esportivos produzidos no Vietnã e Indonésia e extensão da entrada de soja brasileira em território chines.
A respeito desse último ponto, é curioso notar que, em janeiro de 2025, antes da posse de Trump, a China já havia acertado a compra de volume de soja brasileira suficiente para a cobertura da demanda relativa ao primeiro trimestre do ano, contra metade em igual intervalo de 2024, o que revela a expectativa de tempos menos róseos pela frente.
Por essa ordem ainda pouco precisa de ideias, diante da conduta extremista e autoritária do “antes” esteio do equilíbrio global, a recomendação básica engloba posturas cautelosas, desprovidas de comportamentos radicais, reforçadas pela ativação de instrumentos que propiciem negociações diplomáticas maduras, como a reciprocidade aprovada pelo Congresso brasileiro.
A atenção redobrada nas conversações se mostra ainda mais importante ao se perceber, no outro lado da mesa, a companhia de representantes das “Organizações Tabajara”, avessos a consultas equitativas e desatentos aos estragos decorrentes do enfraquecimento do dólar e da queda do preço do petróleo e do valor de mercado das empresas.
Isso é particularmente mais grave quando se constata, na órbita macro, o superendividamento de governos e firmas, que buscaram US$ 25 trilhões em crédito, em 2024, 67% superior ao endividamento antecedente ao surto de Sars-CoV-2 e três vezes acima de 2007, anterior ao default do subprime dos EUA, segundo a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Já pelo ângulo micro, de acordo com o Budget Lab, ente científico da Universidade Yale, as famílias norte-americanas deverão sofrer prejuízos de US$ 3.800, em 2025, em função do tarifaço, o que corresponde a mais da metade do fluxo de rendimentos domiciliares de um mês.
O artigo foi escrito por Gilmar Mendes Lourenço, que é economista, consultor, Mestre em Engenharia da Produção, ex-presidente do Instituto Paranaense de Desenvolvimento econômico (Ipardes), ex-conselheiro da Copel e autor de vários livros de Economia.Instituto Paranaense de Desenvolvimento econômico (Ipardes), ex-conselheiro da Copel e autor de vários livros de Economia