Contas públicas de 2024: “Oscar” de contabilidade criativa

Gilmar Mendes Lourenço.
A formulação de arranjos experimentais em bases de dados administrativos, por parte de entes públicos em nações avançadas e emergentes, democráticas e autocráticas, tem se mostrado cada vez mais corriqueira, com intenções espúrias de mascarar performances adversas e maximizar comportamentos benéficos.
Em entrevista concedida a jornalistas, no apagar das luzes de janeiro de 2025, o presidente Lula, animado com a continuidade do cenário virtuoso do emprego e da atividade econômica, embalado pela alteração da condução da comunicação oficial e prospectivamente atento à dinâmica eleitoral de 2026, demonstrou bastante confiança e desenvoltura ao interpretar e repercutir os números das contas do governo central (Tesouro Nacional, Previdência Social e Banco Central), referentes ao exercício de 2024.
Na verdade, após a aplicação de manejos e dribles no aparato legal, a Secretária do Tesouro Nacional (STN) informou déficit primário de R$ 11 bilhões, ou 0,09% do produto interno bruto (PIB), no ano passado, rigorosamente dentro do limite permitido pela Nova Regra Fiscal, criada em 2023, em substituição ao Teto de Gastos, fixada em desnível de 0,25% do PIB.
Nessa perspectiva, o incumbente sublinhou a ausência de necessidade de novas rodadas de implementação de providências de austeridade fiscal, ou remendos de contenção em reforço ao insuficiente ajuste das finanças públicas, preparado pela equipe do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e enfraquecido por ocasião da tramitação e aprovação pelo Congresso Nacional, em 2024.
Em sendo absolutamente deslocada da realidade, inapropriada e inoportuna, a manifestação do chefe de estado sugere ao menos dois desdobramentos extremamente desfavoráveis: a desautorização da sensatez e esforços de racionalização de despesas, empreendidos pelo time da economia; e a delegação plena da tarefa de reversão da trajetória inflacionária a autoridade monetária.
O titular do poder executivo também se sentiu à vontade para imputar o desequilíbrio fiscal à gestão antecessora, reconhecidamente comprometida, diga-se de passagem, com a farra com recursos públicos, em harmonia fina com o legislativo, para o qual terceirizou a execução da peça.
Contudo, a administração 2019-2022 passou o bastão com saldo positivo de R$ 54 bilhões, em 2022, ou 0,55% do PIB, ainda que amparado no calote de parcela expressiva dos precatórios e no ingresso de receitas derivadas do pagamento de dividendos recordes, provenientes das companhias controladas pelo estado, em especial a Petrobras.
A esse respeito, simulações realizadas pelo próprio Tesouro para a aferição do “resultado fiscal estrutural” revelam que, se retiradas as influências transitórias e conjunturais na marcha da operação orçamentária, como precatórios, cotações do petróleo e condução política das estatais, aquela folga se transformaria em apreciável insuficiência de 0,8% do PIB.
Porém, de maneira conhecida e rotineira, o atual ocupante do Palácio do Planalto costuma recorrer a variantes da expressão “herança maldita”, supostamente recebida dos responsáveis que o antecederam, como um verdadeiro mantra a justificar a tomada permanente dos palanques eleitorais e a locução de subterfúgios populistas, ainda que ancorados na correta bandeira de inclusão social, com ênfase à prioridade de eliminação da pobreza e miséria.
Nunca é demais lembrar que, combinadas com a desinflação promovida pelo Plano Real e a restauração do poder de compra do salário mínimo, a partir de 1994, as iniciativas oficiais de transferência direta de renda explicam, em grande proporção, a diminuição da desigualdade social verificada no país no transcorrer de mais de duas décadas.
Igualmente relevante é a larga densidade e capacidade competitiva, ou mesmo favoritismo eleitoral, conquistado por políticos, de distintos matizes ideológicos, que abraçam e/ou acrescentam as ações assistenciais nas correspondentes condutas, potencializadas com a possibilidade de uso da máquina pública e partidária e outros penduricalhos comuns na democracia brasileira, como os vultosos e escabrosos fundos eleitoral e partidário.
Portanto, a subida do desnível para R$ 228,5 bilhões, em 2023, ou 2,4% do PIB, constituiu obra do pré-governo Lula 3, acolhida na PEC da Transição, acertada entre os futuros membros da coligação vencedora do pleito de outubro de 2022, e o parlamento, voltada à desativação da bomba fiscal armada pelos inúmeros desmandos do postulante derrotado na eleição e viabilização da cobertura dos dispêndios sociais potenciais, levantados pela plataforma vitoriosa nas urnas eletrônicas.
Por essa ordem de compreensão, sem qualquer indicação de firmes compromissos de drástica diminuição dos gastos correntes, tanto por parte do governo quanto da Casa de Leis – fervorosamente dedicada à multiplicação dos valores das emendas de deputados e senadores e à generosa renegociação das dívidas dos estados, que prejudicam sobremaneira o foco e a eficácia das políticas públicas -, o acentuado declínio do rombo deve ser imputado à não poucos malabarismos de engenharia financeira.
Apenas a título de esclarecimento técnico, é interessante assinalar que o resultado apresentado desconsidera os gastos incorridos na alocação de recursos da ordem de R$ 32 bilhões na mitigação dos estragos causados pelas enchentes que atingiram o estado do Rio Grande do Sul e os incêndios que afetaram a região do Pantanal.
Em se incorporando as cifras transferidas para atendimento dos dois eventos extremos, associados às mudanças climáticas globais, ações de agentes criminosos e, principalmente, despreparo de dirigentes públicos, o buraco orçamentário saltaria de R$ 11 bilhões para R$ 43 bilhões, o que equivaleria a 0,36% do PIB e constituiria furo do teto do novo arcabouço.
Não bastasse isso, predominaram constantes manobras ou jogadas entre arrecadação e gastos, entre os dois anos fiscais, direcionadas deliberadamente ao aumento da degradação dos números contabilizados em 2023 e à melhora, se é que isso é possível, do balanço de 2024.
Por meio de receitas extraordinárias e inscrição de dispêndios fora da meta, caso do Programa Pé-de-Meia, tentou-se ocultar o estouro adicional das rubricas previdenciária (furo de R$ 297,4 bilhões, no regime geral) e do Benefício de Prestação Continuada (BPC) em R$ 30 bilhões e R$ 7,6 bilhões, respectivamente, que, por conta da ampliação quantitativa do volume de beneficiários e, sobretudo, da indexação automática ao salário mínimo, experimentaram expansão real de 3,8% e 14,9%, respectivamente.
Calcula-se que, se consideradas as saídas de caixa devolvidas ou rebaixadas para 2023, antes da instituição da Nova Regra, e as verbas canalizadas para os acontecimentos emergenciais, a diferença entre despesa e receita ficaria em praticamente -1% do PIB, em 2024, o que configuraria um acidente de administração financeira de grandes proporções.
Sem contar que, conforme inferências do Instituto Fiscal Independente (IFI), organismo vinculado ao Senado da República, se suprimidas as acidentalidades, as despesas primárias da União teriam crescido 11% e 4,3% acima da inflação, em 2023 e 2024, respectivamente.
Essa performance só teria sido suplantada pelo ano de 2020, quando da deliberação do orçamento extraordinário, pelo legislativo, como anteparo financeiro aos aportes destinados ao abrandamento dos impactos econômicos e sociais ocasionados pela escalada da pandemia de Covid-19.
Nessas circunstâncias, parece razoável o estabelecimento de um paralelo com o enredo do multipremiado filme nacional “Ainda Estou Aqui”, que destaca horrores e superações na vida de uma família perseguida pela ditadura militar brasileira, na década de 1970.
Só que, desta feita, o protagonismo repousa no retorno do hábito de “tortura de estatísticas”, promovido por diferentes governos, objetivando a obtenção da confissão de crimes não cometidos ou ao menos a admissão da culpabilidade daquilo que se mostre mais conveniente aos grupos instalados no poder.
O mais gritante é que a experiência histórica comprova que a manipulação de grandezas fiscais, mesmo que apoiadas em alicerces e/ou brechas legais, alinhada primordialmente a projetos de restauração de popularidade do mandatário da vez, corresponde a uma considerável força de perturbação do ambiente micro e macroeconômico.
Em outras palavras, tais artifícios, denominados de contabilidade criativa, rotineiros nos tempos de Lula 2 (2007-2010) e Dilma 1¼ (2011-maio/2016), que, somados a descoberta de expressivas estripulias fiscais e corrosão da retaguarda parlamentar, custaram a interrupção do mandato popular da presidente, servem apenas para exacerbar incertezas.
A percepção de utilização dos famosos “jeitinhos contábeis” ofusca a avaliação do cotidiano econômico e, em consequência, prejudica o processo de tomada de decisão de atores públicos e privados, que, nos dias atuais, já operam suficientemente abalados por disfunções exógenas e endógenas.
No plano externo emerge a imprevisibilidade e virulência trumpista, nos Estados Unidos, e o avanço do nacionalismo de extrema direita, camuflado por paradigmas industriais substitutivos de importações, mediante a deflagração de conflitos comerciais, com pronunciada probabilidade de abalo do frágil alinhamento dos preços relativos.
Do lado do circuito doméstico, surge a desgarrada inflacionária, a subida dos juros e da dívida pública e a gangorra do dólar, além dos perturbadores patamares de inadimplência de famílias e empresas, que consubstanciam sintomas de desaceleração dos negócios.
O artigo foi escrito por Gilmar Mendes Lourenço, que é economista, consultor, Mestre em Engenharia da Produção, ex-presidente do Instituto Paranaense de Desenvolvimento econômico (Ipardes), ex-conselheiro da Copel e autor de vários livros de Economia.Instituto Paranaense de Desenvolvimento econômico (Ipardes), ex-conselheiro da Copel e autor de vários livros de Economia.